04 Outubro 2019
Observador informado do mundo católico, Henri Tincq denuncia em um livro engajado o governo “clerical” e “sexista” da Igreja.
A entrevista é de Jérôme Cordelier e Thomas Mahler, publicada por Le Point, 02-10-2019. A tradução é de André Langer.
Cronista religioso durante décadas do Le Monde, para o qual cobriu – notavelmente – o longo pontificado de João Paulo II, Henri Tincq continua sendo um observador informado dos segredos do mundo católico. Tocada como muitos crentes pelo acúmulo de escândalos que maculam a Igreja, esta fina pluma fornece uma análise sem rodeios da crise atual pela qual a instituição cristã está passando em um livro didático e engajado, Vatican, la fin d’un monde (Vaticano, o fim de um mundo, Éditions du Cerf). Entrevista com um dos melhores especialistas do catolicismo, que impulsiona o Papa Francisco a ir ainda mais longe em seu desejo de pôr um fim ao clericalismo.
Você faz um paralelo entre a crise atual na Igreja Católica e a queda do sistema soviético na década de 1980. Realmente?
Estamos assistindo a um colapso do sistema de poder católico. O que está em jogo é uma terrível crise moral, alimentada pelas revelações de crimes sexuais contra crianças, contra seminaristas e até freiras e por alegações de “vida dupla” de cardeais, bispos, etc. A essa crise de moralidade soma-se uma crise de governança, seguida de uma crise doutrinal. É uma crise global, “sistêmica”, como o próprio Papa Francisco disse. A Igreja é e continuará a ser essa comunidade de pessoas fiéis aos Evangelhos e a Cristo. Mas o que está em jogo na crise católica hoje é o fim de um sistema de poder. Um sistema clerical, patriarcal, romano, machista, sexista, encarnado por um governo e um papa, dito infalível, que precisa prestar contas apenas a Deus.
Você revisita o funeral de João Paulo II, em abril de 2005, quando dois milhões de pessoas choravam nas ruas de Roma e pediam que ele fosse imediatamente proclamado “santo”. Mas essa “apoteose”, como você diz, é de fato o começo de um crepúsculo... 2005 é também a retirada da vida pública de Maciel, o fundador dos Legionários de Cristo, um criminoso sexual, um trapaceiro de longa data protegido pelo Vaticano de João Paulo II.
Eu acompanhei de perto esse extraordinário pontificado de mais de um quarto de século, esse pontificado solar de João Paulo II (1978-2005). A unanimidade se manifestou na sua morte e durante um grandioso funeral na Praça São Pedro. João Paulo II é o “cura do mundo” que viajou para todos os países, lutou contra todos os sistemas de opressão, que contribuiu, à sua maneira, para a queda do comunismo, que trabalhou para a reunificação da Europa, pelas liberdades e pelos direitos humanos.
Mas, à luz do que aconteceu de lá para cá, e quinze anos após sua morte, é preciso proceder a uma reavaliação de seu resultado. Esse papa que estava doente, mal cercado por homens que escondiam dele a vergonhosa realidade, não conseguiu dimensionar o escândalo dos abusos sexuais que havia eclodido. A proteção que o criminoso Marcial Maciel Degollado desfrutava com ele e seu grupo de pessoas mais próximas é sua maior zona de escuridão. João Paulo II está, no final das contas, na origem desse tipo de glaciação da Igreja nos planos disciplinar, doutrinal e moral, que a tornou pouco apta para enfrentar os tumultos de hoje.
Nenhuma das questões levantadas durante a crise dos abusos – por que não há mulheres à frente da Igreja? Por que não relaxar as regras da castidade ou do celibato de religiosos e sacerdotes? – foi objeto de uma reflexão e teve uma solução nos pontificados de João Paulo II ou Bento XVI. Trata-se de uma incapacidade de gerenciamento ou um desejo de proteger a instituição?
João Paulo II protegeu homens como Maciel por causa dos vínculos que ele mantinha com a América Latina e da fortuna de seu movimento – os Legionários de Cristo – que serviram para financiar, por exemplo, o sindicato Solidarnosc na Polônia. Portanto, não pretendo “descanonizar”, como alguns já perguntam, o Santo Papa João Paulo II. Em termos de política externa, ele certamente foi um grande papa. Mas, enquanto viajava, a cúria romana se autogovernava de maneira catastrófica, e bloqueou todas as questões disciplinares e todas as evoluções relativas às mulheres, o estatuto e o celibato dos padres, o discurso da moral sexual da Igreja, que estão no centro da crise atual.
Conforme admite, você mesmo demorou a compreender a magnitude desta crise...
Sim, levei muito tempo para tomar consciência da gravidade da situação. Eu estava mais interessado na política externa do Vaticano ou na teologia de Joseph Ratzinger/Bento XVI do que nos escândalos sexuais que, admito, me pareciam periféricos. Eu via nisso, em primeiro lugar, a disposição de alguns meios de comunicação de acertar contas com uma Igreja acostumada a dar lições. Eu falei de um “linchamento midiático”. Repeti a estatística de que 90% dos casos de pedofilia ocorreram nas famílias. Este livro é, talvez, uma maneira de reparar meu erro de julgamento dos primórdios desta crise.
Mas, ao descobrir o acúmulo dos escândalos sexuais, de Boston à Austrália passando pela Irlanda, pela França, lendo testemunhos estarrecedores, os livros – que são verdadeiros socos – de Véronique Margron e de Christine Pedotti, nós, católicos, ficamos pasmos. Os bispos da França demoraram muito para falar sobre esses assuntos, para ouvir as vítimas e para recebê-las em suas assembleias. Toma-se, finalmente, consciência da amplitude do escândalo. Desde o Motu Proprio de 9 de maio de 2019 do Papa Francisco, chamado Luz do mundo, a denúncia não é mais considerada um pecado. A luta contra o “clericalismo”, desejada pelo próprio papa, está avançando. Na França, a Comissão Sauvé está fazendo um trabalho importante. Muitos debates são organizados nas paróquias. As coisas estão finalmente começando a mudar!
Como você reagiu às revelações de Frédéric Martel em Sodoma sobre as “vidas duplas” de cardeais em Roma?
Eu tinha lido, antes da publicação, o livro de Frédéric Martel, sua descrição “feliniana” dos costumes no Vaticano. Também neste caso eu estava um pouco atrasado... As histórias do acontece debaixo dos lençóis na Igreja não me interessavam. Eu sabia muito pouco sobre o ambiente homossexual e, durante trinta anos, eu acompanhei a vida da Igreja e do Vaticano sem perceber essas “vidas duplas”. Certamente, são poucos, mas como imaginar que bispos e cardeais celebram a missa pela manhã e se reúnem à noite nas saunas gays?
O que eu fiz para não perceber essa realidade, para não medir que a homofobia de alguns cardeais esconde uma homossexualidade aberta ou camuflada? Como posso esconder que minha própria fé nesta Igreja – e minha fé tout court – foi seriamente abalada por essas revelações de práticas homossexuais, de abusos sexuais de padres contra crianças e freiras? Sempre é possível pensar que o livro de Frédéric Martel é, de certa forma, ultrajante. Mas, que eu saiba, desde a sua publicação, não foi aberto nenhum processo judicial ou realizada uma investigação que negasse tudo o que foi abordado.
O papa falou recentemente de um risco de “cisma” na Igreja, que é novo na boca de um pontífice. Ele está certo?
É o efeito da publicação do livro bem documentado de Nicolas Senèze, correspondente do La Croix no Vaticano, sobre a oposição conservadora ao Papa Francisco, vinda especialmente dos Estados Unidos (Comment l'Amérique veut changer de pape, Bayard). Jornalistas falaram em “cisma” durante uma viagem do papa e Francisco retomou a palavra.
Eu não ignorava a diversidade e a extensão da oposição ao papa, mesmo em Roma, vinda de cardeais como o americano Raymond Burke ou o guineense Robert Sarah. Homens do aparato e que acusam o Papa Francisco de atentar contra a doutrina católica sobre a indissolubilidade do casamento, a homossexualidade, o aborto e a contracepção. Mas daí a falar em “conspiração” ou “cisma”, essas palavras são excessivas. Ou prematuras. No momento, o único cisma que existe na Igreja Católica desde 1988 é o dos “tradicionalistas” do arcebispo Lefebvre.
Para os conservadores, por querer esposar o espírito de seu tempo, a Igreja está se perdendo. O que você pensa sobre esse argumento?
Esta é a grande questão, desde... São Paulo, para todos os crentes: a Igreja deve seguir o mundo ou o mundo deve se converter à Igreja? Os “tradicionalistas”, como se costumava dizer ontem, ou os ultraconservadores do Vaticano hoje, é claro, defendem a segunda opção. Mas o que eles não querem reconhecer é que Francisco, que eles consideram um perigoso papa liberal, até agora não fez nada que atentasse contra a doutrina católica.
Ele defende opções pastorais específicas – uma melhor acolhida para os homossexuais, os divorciados em segunda união, as mulheres que abortam –, mas, no fundo, apesar de tudo o que avançam os “anti-Francisco”, o papa não tocou em um “i” da moral católica. Ele não propôs nenhuma reflexão nova da Igreja Católica sobre a interrupção voluntária da gravidez, sobre a PMA [procriação médica assistida], sobre a comunhão de divorciados em segunda união ou sobre as uniões de mesmo sexo. E ele não sugeriu nenhuma mudança na posição da Igreja sobre a pílula, o preservativo e a contracepção.
O grande escândalo relacionado aos abusos sexuais de padres, no entanto, é uma oportunidade para refletir sobre questões delicadas – não de doutrina, mas de disciplina – como aquelas da castidade e do celibato dos padres. Tais regras antigas não podem mais ser mantidas hoje. A Igreja deve pôr um fim à hipocrisia, e por razões de humanidade! Muitos padres e religiosos vivem em extrema solidão. A escolha entre o celibato e o casamento deveria ser deixada aos futuros padres. Não sou a favor do casamento dos padres, mas devemos lembrar que a ordenação de homens casados não levanta nenhum problema de doutrina!
Nos primórdios da Igreja, os padres eram casados. O celibato sacerdotal nunca foi um dogma. Todo mundo sabe que essa prática só foi imposta no século XI no Ocidente. Existem padres casados nas Igrejas orientais, inclusive católicos. O Sínodo sobre a Amazônia, que começa no dia 06 de outubro em Roma, deve permitir novos ministérios de homens casados e até de mulheres. Isso não se dará sem tensão, porque como, amanhã, fazer a diferença entre os fiéis das regiões remotas da Amazônia e aqueles das nossas campanhas, na França, por exemplo, onde também há dificuldades para recrutar padres?
Por outro lado, sinto-me tocado pela resposta das comunidades católicas ao “grande debate” aberto pelo Papa Francisco sobre o “clericalismo”. Muitas discussões, muitos blogs estão aparecendo em todos os lugares. E vejo que toda uma franja do mundo católico se mostra aberta a evoluções. Mesmo no vocabulário, nos comportamentos em relação aos clérigos, por exemplo. Comecemos por parar de chamar o bispo de “Monsenhor” ou o cardeal de “Eminência”! Na nossa época, esses títulos não fazem mais sentido.
O que pensa sobre a baixa votação que teve a lista encabeçada por um candidato abertamente católico, François-Xavier Bellamy, nas eleições europeias?
Podemos ter superestimado a importância do movimento católico conservador nascido em 2012-2013, na época da La Manif pour tous, depois em 2016 durante a campanha de François Fillon (com Senso Comum). François-Xavier Bellamy surfou nessa tendência, mas fracassou, porque os católicos, não esqueçamos, são muito apegados à Europa.
A União Europeia foi levada às fontes batismais por cristãos, Adenauer, de Gaulle, Schuman e de Gasperi, seguidos na França por Jacques Delors. Os católicos continuam muito apegados à Europa, apesar das dificuldades e da tentação populista. Mas o voto católico pode ser diferente amanhã em um contexto nacional.
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“Estamos assistindo a um colapso do sistema de poder católico”. Entrevista com Henri Tincq - Instituto Humanitas Unisinos - IHU